Comandante de unidade do Exército no RJ pede munição e arma a oficial da PM
Tenente-coronel pediu, diretamente, ’50 tiros’ de ponto 40 e uma arma da marca Glock a capitão da PM que era comandante da UPP Vila Kennedy. Áudio da conversa foi obtido com exclusividade pelo G1.
Por: Marco Antônio Martins e Nicolás Satriano, G1 Rio.
Uma conversa entre dois oficiais, um da Polícia Militar fluminense e outro do Exército Brasileiro, chamou a atenção de agentes que apuravam dois homicídios no Morro do Fallet, favela na região central do município. Na gravação obtida pelo G1, um dos militares pede diretamente ao outro munição e uma arma, ambas de uso restrito das forças de segurança. A prática está em desacordo com o Estatuto do Desarmamento, que considera crime a cessão sem autorização.
O diálogo ocorreu no dia 9 de setembro de 2017. No início daquela noite, o capitão da Polícia Militar Ricardo Franco Nicodemos Noronha, na época comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio, recebe uma ligação do tenente-coronel Paulo Ubirajara Mendes, atual comandante do 2º Regimento de Cavalaria de Guarda do Exército Brasileiro.
Nicodemos: Ó, coronel!
Mendes: Fala, moleque, tudo na paz?
Nicodemos: Tudo bem? Graças a Deus.
Mendes: Tudo ótimo, cara. Prazer falar contigo. Tudo bem?
Nicodemos: Sempre [risos]. O que eu posso ajudar?
Mendes: Não, cara. Primeiro, tu não pode ajudar p*rra nenhuma. Calma, relaxa. Primeiro, vamos relaxar. Tu ainda segue nessa tua UPP aí, rapaz? Onde é que tu anda, agora?
Nicodemos: Eu tô na UPP da Vila Kennedy.
Mendes: Agora tu tá na UPP da Vila Kennedy…
Mendes: Tu viu que eu te pedi um pouco de munição .40, né?!
Nicodemos: Isso aí é mole.
Mendes: Eu tenho uma pistola .40 aí. Só que, p*rra, tá um imbróglio pra conseguir munição com a CBC [Companhia Brasileira de Cartuchos], um parto, um criolo doido. Tá f*da. Demora seis meses pra tu arrumar cinquenta tiro (sic).
Nicodemos: É… difícil pra caramba. Eu tenho em casa sobrando.
Mendes: Se tu me arrumar uns 50 tirinho de .40, te agradeço.
Nicodemos: Eu tenho em casa sobrando. Já levo essa semana aí.
Após prometer que entregaria os 50 tiros de munição .40 (o que equivale a uma caixa de balas) que tem em casa sobrando, o capitão recebe mais um pedido do tenente-coronel. Dessa vez, o comandante do Regimento de Cavalaria quer uma Glock.
Mendes: Outra parada é o seguinte, Nico. Olha só. Eu andei dando uns acetileno aqui no regimento, até falei com o Evangélio, e nego andou me prometendo, entendeu?
Nicodemos: Uhum!
Mendes: Eeee, e aí eu falei pro Evangélio: ‘Pô, Evangélio, me arruma uma Glock aí, me arruma uma…’
Nicodemos: Isso aí, isso aí, vamos conversar pessoalmente.
Mendes: Melhor, melhor.
Nicodemos: Entendeu?!
Mendes: Melhor, melhor, melhor, melhor. Aí, aí a gente conversa com calma, Nico. Tá bom?
Nicodemos: Hum, hum, tranquilo.
Mendes: E aí, a gente desenvolve esse papo aí.
Nicodemos: Tranquilo.
Por fim, os oficiais, que na época trabalhavam a cerca de 10 km de distância um do outro, combinam um encontro. O tenente-coronel do Exército convida o capitão para uma visita ao regimento. O oficial da PM prontamente aceita e sugere: “A gente toma um café”.
Mendes: Moleque, então é o seguinte, dia 23 te espero aqui no regimento.
Nicodemos: Estarei aí sem falta. Essa semana eu do um pulo aí, eu tô com viatura, é mais fácil.
Mendes: É? Tá bom então.
Nicodemos: O senhor tá no expediente direto, no RPG?
Mendes: Direto. Tô sempre no regimento.
Nicodemos: Show de bola. Eu dô um voo essa semana aí, sem falta. A gente toma um café.
Mendes: Falou, moleque. Forte abraço. Fica com Deus.
Nicodemos: Fica com Deus.
Ilegalidades
Ao G1, o professor e jurista Luiz Flávio Gomes explicou que a cessão de munição ou entrega de armas diretamente a outra pessoa é ilegal. Gomes esclareceu que, mesmo que os envolvidos sejam militares, oficiais ou praças, o fornecimento direto de equipamentos, restritos ou não, configura crime previsto no Estatuto do Desarmamento.
“A lei quer saber com quem está a munição ou a arma. Mesmo no caso de militares. O Estado quer ter o controle [sobre o armamento]”, resumiu o jurista.
O Artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, por exemplo, estabelece que é crime “fornecer, ceder, ainda que gratuitamente, (…) emprestar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. A pena prevista para o crime é reclusão de três a seis anos, além de multa.
A solicitação do tenente-coronel de uma arma da marca austríaca Glock é um caso à parte. Isso porque no Brasil só podem ser comercializadas armas de fabricação nacional, das marcas Imbel ou Taurus.
As forças de segurança, no entanto, podem utilizar armamento estrangeiro caso recebam autorização expressa da Justiça. No “mercado negro”, porém, é possível obter as armas. Segundo Gomes há, no Brasil, cerca de nove milhões de armas circulando ilegalmente.
Um oficial da PM ouvido pelo G1 confirma as informações do jurista. O policial acrescentou que, além de aval da Justiça, é preciso uma autorização especial e a arma deve ser utilizada em estande de tiro, não pode ser usada para porte.
O militar explicou, ainda, que PMs não recebem munição “de sobra”, exceto se as balas foram compradas por ele. Mesmo assim, o que pode ocorrer é ele ter uma arma acautelada, que é entregue com três carregadores cheios.
Para conseguir a munição ou mesmo manter uma arma acautelada, os policiais precisam de uma autorização do Estado-Maior Geral da PM. Depois, o PM precisa ir ao Centro de Suprimento de Material da corporação (CSM), em Niterói, e retirar o armamento.
Capitão era alvo
O diálogo entre os dois oficiais surgiu durante as investigações que resultaram na prisão do major da PM Alexandre Frugoni, em outubro do ano passado, em ação da Corregedoria da PM. No mês seguinte, o major foi solto por determinação da Auditoria da Justiça Militar.
Autorizada pela Justiça, a interceptação telefônica chegou ao comandante do 2º Regimento de Cavalaria de Guarda por acaso. O alvo original das escutas era, na verdade, o capitão da PM.
Como na conversa entre eles foram identificados indícios de irregularidades, o trecho foi destacado e relatado em inquérito policial-militar. Apesar da gravação, ainda não há investigação aberta sobre o caso; tanto a PM quando o Comando Militar do Leste informaram que não têm conhecimento dos diálogos.
Para falar sobre a cessão de munição e o pedido da arma, o G1 buscou o capitão e o tenente-coronel pelos números de telefone apresentados no IPM. Às 19h16 do dia 4 de julho, por telefone, a equipe de reportagem conseguiu falar com tenente-coronel sobre a conversa com o capitão da PM Nicodemos, em 2017.
Foi perguntando ao oficial se ele conhecia o capitão, mas Mendes respondeu que “não falaria por telefone sobre o assunto”. Questionou-se, então, se ele poderia conceder uma entrevista pessoalmente. O oficial disse que existe uma “hierarquia militar” e a ligação caiu.
Já o contato com o capitão Nicodemos foi às 20h41 do dia seguinte. Foi perguntado ao oficial se ele conhecia o tenente-coronel Paulo Ubirajara Mendes. O oficial respondeu que o nome “não era estranho”.
Em seguida, foi questionado se o capitão forneceu a Mendes munição .40 e a arma da marca Glock requisitadas pelo oficial do Exército. O capitão negou saber qualquer coisa referente aos pedidos e disse não se recordar do diálogo.
Antes de finalizar a conversa, o capitão perguntou como o repórter havia conseguido o número de celular dele. Foi informado ao oficial que a legislação garante o sigilo da fonte. Ele, então, pediu que o número não fosse repassado a outras pessoas.
Procurados, Polícia Militar e Comando Militar do Leste (CML) responderam, em nota, que desconhecem as informações obtidas pela reportagem.
O G1 apurou que, após ser comandante da Vila Kennedy – comunidade escolhida para ser modelo da intervenção federal na segurança no RJ -, o capitão Nicodemos foi transferido para o 41º BPM (Irajá), onde está lotado atualmente.
O CML confirmou que o tenente-coronel Mendes é o atual comandante do 2º Regimento de Cavalaria da Guarda e informou que o oficial tem registro de colecionador de armas.
Autorização para compra de armas e munição
O Comando Militar do Leste também respondeu a questionamentos do G1 referentes a autorização para compra de armas de fogo e/ou munição.
Foi explicado pelo CML que, para adquirir os equipamentos (tanto de uso restrito ou permitido) diretamente na indústria, é preciso solicitar autorização à Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC).
Tal solicitação deve ser encaminhada pela organização militar (OM) à qual a pessoa pertença à DFPC. Isso é feito pelo Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados da Região Militar de vinculação.
O CML esclareceu que as autorizações para “aquisição de armas de fogo e munição de uso permitido no comércio especializado são concedidas pelos comandantes, chefes ou diretores da organização militar de vinculação do militar”.
O texto informa, ainda, que a autorização para a aquisição de armas e munições é concedida pela Região Militar de vinculação do atirador ou colecionador.
Descontrole
Policiais ouvidos pelo G1 sob condição de anonimato garantem que o empréstimo de munição é comum entre profissionais das forças de segurança.
Segundo explicaram, a “burocracia” é muito grande para obter munição .40, por exemplo. Um deles confirma ser possível que todo o trâmite para se ter acesso aos lotes demore até seis meses, caso seja respeitado o rito estabelecido pelo Exército.
Um deles disse que, diante de tal burocracia e com a crescente violência contra policiais, os integrantes das forças que têm acesso às munições repassam aos colegas “na confiança” de que as balas serão usadas em treinamento ou para defesa.
As explicações dadas pelos agentes evidenciam o descontrole sobre a munição cedida. Outro problema apontado é que não há como rastreá-la. A bagunça já foi, inclusive, objeto de Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa fluminense, em 2011.
No relatório produzido sobre o tráfico de armas, é dito que a maior parte dos desvios de munição ocorre internamente. Uma das propostas da CPI era implementar o rastreamento de armas e munição vendidas para as polícias, o que, naturalmente, permitiria saber de onde são caso forem utilizadas para outras finalidades.
Quando foi instalado o Programa Delegacia Legal no RJ, da Secretaria de Segurança Pública, havia a previsão, junto à CBC, de desenvolver um sistema para permitir maior controle do uso de munição por cada policial em serviço. O sistema deveria ser difundido para outros estados, mas não foi colocado em prática.
G1/montedo.com