‘INVISÍVEIS’: Esquecidos pelo poder público, moradores de rua se espalham pela capital
Entra governo, sai governo, e um dos principais problemas sociais de Porto Velho se perpetua sem entrar no radar do poder público: pessoas em situação de rua. Segundo especialistas, a maior parte delas não está apta a votar e, entre outros motivos, essa peculiaridade, pode ajudar a explicar o desprezo dos políticos pelos sem-teto. Em condição de vulnerabilidade, essas pessoas nem sequer compõem o principal censo demográfico do Brasil, estudo estatístico que mapeia a população em todo o território nacional.
Entretanto, aos olhos de quem trafega por Porto Velho e as principais cidades do Estado, eles não são invisíveis. Ocupam praças, estacionamentos, acomodam-se sob marquises ou em áreas verdes, descampadas ou não. Moradores e comerciantes afirmam que a população em situação de rua tem aumentado e deve passar por novo incremento, pois o número de desabrigados tende a crescer diante da proximidade das festas de fim de ano. Esse cenário torna mais frequentes outras feridas sociais, como a violência. Os últimos levantamentos nacionais sobre as condições em que vivem os moradores de rua, foi realizado em 2009 e 2017 a pedido do Governo Federal e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) Confira aqui e aqui, respectivamente.
Não existe ser humano que desconheça o amargor da rejeição. Mas para alguns essa sensação é permanente. Talvez por isso que moradores de rua sejam tratados como seres invisíveis. Encará-los é se defrontar com solidão, culpa, vergonha, abandono. É uma combinação de sentimentos que todos querem evitar.
Mas a existência sofrida nem sempre apaga os sonhos. Mesmo de pessoas fragilizadas. Algumas delas serão apresentadas a você pela reportagem. Gente que aspira por afeto e dignidade, ou pelo menos uma parte disso. Quase ninguém parece disposto a conceder atenção a seres humanos enrolados em um cobertor no canto de uma calçada.
Por trás de cada pessoa, uma história. É isso que pretendemos lembrar. E inspirado na iniciativa, de contar a história de quem vive abaixo da esperança de dias melhores, fomos buscar os depoimentos de quem vive essa realidade dura e cruel na maioria das vezes. Uns superinteressantes, outros nem tanto. Porto Velho invisível revela histórias incríveis, que nos faz parar para pensar nas pessoas que vivem à margem da sociedade. Nos que são os conhecidos “invisíveis sociais”.
Ministério Público
Abordagem, políticas públicas e recuperação da dignidade de moradores de rua também é uma preocupação do Ministério Público. Um “inquérito civil público” foi montado pela promotora de justiça da vara de cidadania, Daniela Nicolai de Oliveira Lima, que pediu explicações sobre a atual situação dos moradores de rua principalmente em Porto Velho. O MP/RO quer saber por que a cidade não aderiu à política nacional voltada para a população de rua, instituída em 2009 pelo Governo Federal.
De acordo com o Ministério Público, existe uma Legislação através do Decreto Federal 7.053/2009 que trata da Política Nacional voltada para a população em situação de rua. Também existe a Lei Orgânica que prevê o mesmo amparo. O Conselho Nacional expediu uma diretriz para todos os Ministérios Públicos de todos os Estados para que tenham uma política junto aos municípios com foco em implementar esse amparo junto a população de rua.
A ação do MP-RO teve início após denúncias sobre o aumento de “Moradores de Rua” que estão vivendo em praças, prédios abandonados, canteiros centrais de avenidas e no terminal rodoviário da capital. “ O número vem crescendo muito e isso representa um perigo para a sociedade. Trabalhamos em que fazemos em pareceria promotoria da Saúde Pública” disse a promotora.
(Um “inquérito civil público” foi montado pela promotora de justiça da vara de cidadania, Daniela Nicolai de Oliveira Lima/ Foto Divulgação)
O inquérito montado pelos promotores relata a situação deprimente de várias pessoas que vivem na rua. O processo é de março de 2017. A prefeitura de Porto Velho tinha 15 dias para se manifestar e apresentar uma solução para os questionamentos do Ministério Público, mas o pedido não teve resposta.
“Acionamos a prefeitura, o município acenou no sentido de implementar essas políticas, mas é necessária uma parceria, inclusive com o governo federal para que essa rede de atendimento possa ser ampliada” ressaltou a promotora.
No documento, o Ministério Público pede que o executivo municipal coloque em prática as chamadas Políticas Públicas, voltadas para a recuperação dos cidadãos em situação de vulnerabilidade nas ruas da capital rondoniense.
Mas o aumento dos moradores de rua não é algo que acontece só em Porto Velho. Por falta de ações públicas, moradores de rua se espalharam também para outros municípios do interior. O MP/RO trabalha em conjunto com as promotorias regionais para cobrar das prefeituras uma posição sobre o problema que se espalha e só aumenta em todas regiões.
“A gente sabe que de uma cidade para outra às vezes existe uma mudança de cenário. Porto Velho como é a capital tem uma incidência maior de moradores de rua. Então cabe a cada promotor em sua comarca verificar se a necessidade da interferência do MP ou não” informou a promotora.
O que diz a prefeitura
A Secretaria Municipal de Assistência Social e Família (SEMASF) informa que há pouco mais de 200 delas. Porém, o número é maior, pois a pasta considera apenas o registro de atendimentos nas unidades do governo e nas entidades conveniadas que prestam assistência.
Desde 2015, houve crescimento insuficiente no número de vagas em instituições que abrigam os sem-teto. O total disponível só não é suficiente para atender a população de rua estimada pela SEMASF. As oportunidades de acolhimento em unidades assistenciais não são exclusivas para eles: também abrangem idosos e famílias com deficiência.
Nos últimos anos, alguns fatores contribuíram para o aumento da quantidade de moradores de rua instalados em Porto Velho. Um deles foi o salto populacional no Estado: de 11,4% entre 2012 e 2017, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Outro foi a alta do desemprego. Hoje, são 308 mil pessoas sem trabalho formal.
Essas circunstâncias, de acordo com especialistas, contribuem para a falta demoradia. Calcula-se que pelo menos 5% têm emprego, mas não ganha suficiente para conseguir moradia e que 75% fazem alguma atividade autônoma. O restante, 20% não tem nenhum tipo de renda.
A maioria, 88% dessa população é composta por homens, homens que possuem o pouco que carregam e que para se abrigar da chuva ou do sol forte, dependem de plásticos, papelão, cobertores e roupas de doações. 35,5% admitem sofrer com problemas de álcool e drogas e 54,5% tentaram entrar em um local e foram impedidos
Carlos Alberto Francisco, 62, estava deitado em um dos bancos da Praça Aluisio Ferreira. Muito doente, ele tem asma e revela que é difícil conseguir um atendimento médico quando precisa. Além disso, Souza também reclamou que já foi maltratado nas vezes que dormiu em frente ao hospital. “Do jeito que me tratam lá, eu prefiro me virar aqui”, diz.
(Carlos Alberto foi atendido por voluntários de uma igreja da capital/ Vídeo de Nilson Oliveira)
Enquanto isso, moradores reclamam
O crescimento da população em situação de rua é perceptível em todas as regiões de Porto Velho. E as famílias que vivem em casas e apartamentos reclamam do aumento da insegurança.
“Muitos traficam e usam drogas. Já os vi fazendo sexo, fogueira e muita fumaça. Às vezes, brigam e se esfaqueiam, falam muitos palavrões e batem latas”, reclama a dona de casa Michelle da Cunha, 32 anos, moradora no bairro Embratel desde 2013.
(Moradores de rua bebem e usam drogas no portão da casa de Michelle/ Foto Paulo Besse)
Michele lembra que, quando chegou, não havia tantos moradores de rua. Mas o número de sem-teto cresceu muito, diz, principalmente entre os comércios e as residências. Ao mesmo tempo, aumentou a preocupação dela com os dois filhos, de 3 e 7 anos.
A situação chegou a ponto de se tornar insustentável. Tanto que, há dois anos, ela, o marido e as crianças se mudaram de local no bairro. Antes, a família vivia em uma casa. Hoje, mora no quarto andar de um prédio, mais distante de onde os sem-teto se aglomeram.
Michelle lembra que, quando havia algazarra na rua, costumava subir o volume do aparelho de som e evitava que os filhos chegassem perto das janelas da casa. Também os proibia de brincar na calçada em frente quando havia moradores de rua nos arredores.
“Meu filho mais velho não conseguia dormir por causa do barulho feito pelos moradores de rua. A professora dele me contou que isso atrapalhava o rendimento dele na escola, pois queria dormir durante a aula”, relembra.
O funcionário público Everton Garcia, 36 anos, é síndico do edifício de onde Michelle e a família se mudaram. Ele reforça o infortúnio vivido pela mulher e conta que, houve três trocas de inquilinos no apartamento do térreo. “Eles ficavam chamando nas janelas para pedir comida e dinheiro. Muitas vezes, até furtavam o que conseguiam alcançar”, afirma.
Nos fins de ano, há mais moradores de rua. O número aumenta também quando há “saidão” da cadeia. Fazem algazarra de madrugada, extrapolam no barulho. Já encontramos fezes e facas espalhadas pelo gramado”
Rodoviária
A cena se repete a 800 metros dali, nas redondezas da rodoviária da capital no bairro Embratel. Moradores de rua se aglomeram dentro e fora de um prédio abandonado, próximo à comércios. Do outro lado, na avenida Jorge Teixeira montam barracas e empilham trapos, colchões velhos e baldes, entre outros utensílios.
Quando há denúncia, autoridades vão ao lugar e removem os objetos, porém, esses moradores retornam ao local nos dias seguintes às operações.
“Eles não mexem conosco, mas há o risco de acidente. Eles fazem fogueiras. Se uma fagulha voa e cai no lugar errado, pode causar um desastre. É nossas vidas”, diz um funcionário do estabelecimento, que prefere não se identificar por medo de represálias.
A prefeitura afirma, que monitora as áreas para que os moradores não retornem. “Infelizmente, com a proximidade das festas de fim do ano, esse tipo de invasão aumenta”, acrescenta.
A Prefeitura e o Governo do Estado dizem que, em 2018, realizaram dezenas de operações. “O limite da prefeitura, nesse tipo de operação, é apenas para retirada de objetos afixados na área pública. Não é atribuído à prefeitura poder para retirada compulsória das pessoas”, finaliza Claudinaldo Leão da Rocha.
A Polícia Militar em Porto Velho diz que pode retirar os moradores de rua quando há flagrante de crime, e pede ajuda à população para denunciar delitos, pelo número 190. A Polícia Civil, por sua vez, afirma que “atua de forma repressiva, principalmente combatendo o tráfico de drogas”.
A corporação diz também que identifica esses moradores quando são levados às delegacias e, se houver necessidade, os submete a procedimento criminal. “É importante que todas as ações ilícitas sejam imediatamente comunicadas, inclusive, pela delegacia eletrônica, para que as políticas sociais e de segurança sejam tomadas com base nos dados coletados”, destaca o secretário.
Desemprego
Por trás dos números oficiais e dos relatos de quem se incomoda com a situação, há histórias de vida tristes. Como a de Jacelane Pereira, 40 anos, que deixou Itumbiara (GO), onde nasceu, rodou 2.359 km até Porto Velho, em busca do sonho de “conhecer a cidade”.
Em um ônibus, desembarcou em Porto Velho, sem documentos, como carteiras de identidade e de trabalho. Deixou para trás a vida na roça à procura de emprego em Porto Velho, onde não tem familiares ou amigos.
“Quero arrumar emprego. Posso fazer faxina, ser babá. Se tiver trabalho honesto, não vou morar na rua, usar álcool, crack e cigarro. Vou poder pagar aluguel, comprar fogão, geladeira”, diz uma das mais novas “moradoras” de um terreno abandonado. O mesmo se repete na avenida Jorge Teixeira, onde ela ficou com a família por vários dias, e onde é comum a presença de pessoas sem-teto. Ela diz que, nos próximos dias, pretende concentrar esforços para conseguir emprego.
Três principais fatores explicam o elevado número de pessoas em situação semelhante à de Jacelane. “O desemprego, a crise econômica e a falta de moradia”, explica o psicólogo Sérgio Kodar.
(“Quando faltam vagas de trabalho formal, pessoas tendem a procurar o informal. Isso não basta para segurar a família na cidade”/ Foto Reprodução)
“Quando faltam vagas de trabalho formal, pessoas tendem a procurar o informal. Isso não basta para segurar a família. Eles, então, têm tensões em casa e tentam algo em outra cidade. Não conseguem e param nas ruas”, acrescenta. O pesquisador, doutor em política social, afirma que a maior parte dos sem-teto de Porto Velho não morava aqui antes de fazer da rua seu abrigo.
Um deles é o amazonense Frank Santiago, 42, morador das imediações da rodoviária há três anos. Desde então, perambula pelos arredores em busca de “bicos” como borracheiro, mecânico e eletricista. Mas demonstra desestímulo para conseguir trabalho fixo devido às diversas portas que se fecharam para ele nesse período.
(“Já trabalhei em uma ‘auto elétrica’. Mas faz muito tempo. Hoje, nem tenho vontade de trabalhar. Se me perguntar por que moro na rua, te digo: ‘Não sei’”/Foto Paulo Besse)
Frank se encaixa no perfil da maior parte dos moradores de rua, segundo Sérgio Kodato . “Está em situação de pobreza extrema e não tem acesso a políticas sociais”, explica. Os desafios para esse grupo alcançar reviravolta tende a piorar, segundo a especialista.
Ele afirma que o problema dos sem-teto nos centros urbanos é tão antigo que tem se naturalizado. E mais: a sociedade, segundo a pesquisadora, acostumou-se a culpabilizar esse grupo por diversos problemas, como a violência e a sujeira nas ruas.
É fácil dizer que sempre existirão ricos e pobres, mas isso decorre da desigualdade e da má distribuição de renda. É fácil o governo e a sociedade entenderem como ‘algo natural’. Essa percepção desresponsabiliza o Estado, que faz de conta que não vê os moradores de rua, como se estivessem nessa situação por serem preguiçosos. Mas está muito difícil encontrar emprego”, garantiu
Falta comida
Nenhum ser humano deveria precisar pegar comida do lixo, mesmo assim 31,3%, contam que não comem todo dia, e 14% contam que não tem fonte fixa de comida.
O termômetro marcava 40ºC quando Maria Elisabete da Silva, de 31 anos, se incomoda com o choro de seus dois filhos, que se queixavam de sede. Ela abriu uma fresta na barraca improvisada onde mora e notou, preocupada, que os baldes de doce de leite e maionese que a família usa como caixa d’água estavam vazios. Na barraca de Elisabete, em um terreno abandonado, no centro de Porto Velho, vivem 11 pessoas; sua irmã, Soraia, de 30 anos, é mãe de outras sete crianças.
(Na barraca de Elisabete, em um terreno abandonado, no centro de Porto Velho, vivem 11 pessoas/ Foto Paulo Besse)
Em entrevista ao Rondoniaovivo, as duas mulheres contaram que, no mês passado, já precisaram racionar por quatro dias um pacote de leite para todas as nove crianças. O leite foi usado prioritariamente para alimentar as crianças e para que todas pudessem comer, a mãe diluiu com agua para amamentar todos, incluindo um bebê de apenas 25 dias de vida, que também mora na barraca.
( A irmã conta que, no mês passado, já precisaram racionar por quatro dias um pacote de leite para todas as nove crianças/ Foto Paulo Besse)
Durante uma semana, a reportagem conversou com dezenas de moradores de rua para saber o que eles fazem para suprir as necessidades diárias. A maior parte relata ficar sem comer quase que diariamente e diz que o problema se agrava à noite, durante feriados e finais de semana – quando a maior parte do comércio fecha.
“Você é obrigado a pedir para uma pessoa que não tem higiene nenhuma. Uma bebezinha tomar leite (em pó diluído em agua) é embaçado. Você daria isso ao seu filho?”.
A empatia da sociedade poderia significar menos preconceito e alguma oportunidade aos que mais precisam do Poder Público.