Crônicas Guajaramirenses

A Geografia Pelo Método Confuso


CRÔNICAS GUAJARAMIRENSES.

Por: Paulo Saldanha

Num dia, em pleno domingo primaveril nos idos de 1965, um grupinho de jovens que eu integrava e que era parte do futuro da cidade, já ligeiramente “borrachos”, se reunia no Igarapé Palheta sorvendo dois litros de batida de maracujá devidamente calibrada, embalada não nas graças do deus Baco, mas sustentada na rainha das frutas, a trepadeira da família das passifloráceas.

Naqueles dias era comum alguém fazer um discurso lançando um tema ao léu.

E eis que o Toninho Nogueira, cearense dos melhores, nascido na Serra do Baturité, pediu a palavra e fez comovida oração com saudades da terra de Iracema, proferindo para todos os circunstantes em alto e bom som:

–Terra boa, mais que boa! Terra ótima é o Ceará! – e ensaiou, porque estava um tanto ébrio, um choro intermitente concebido em cima das suas saudosas lembranças.

Paulo Cruz, Delny Cavalcante, Rubens Pinheiro, José Maia, Lourival Diniz e João Oceano, cheios do “mate”, useiros e vezeiros na arte de falar em público, derramaram furtivas lágrimas também absolutamente comovidos com o sentimento saudosista de Toninho Nogueira. Afinal, “bebinhos” se emocionam com facilidade…

Fez-se depois do pranto um silêncio sepulcral, pois naquela plêiade de rapazes os companheiros de Toninho Nogueira intuíam até então que terra boa, terra ótima mesmo era esta, lugar escolhido pelo discursante para viver, trabalhar e ganhar o dinheiro que ele, Toninho, e os irmãos desse próprio já vinham amealhando de há muito, sempre com retidão, correção, inteligência e humildade.

Veio de um desses representantes daquele futuro a tentativa de corrigir a situação, já que a afirmação sobre o Ceará de certa forma nos diminuía o orgulho que sentíamos pela terra que nos serviu de berço, apesar das dificuldades de acesso a Guajará-Mirim, a grande distância desta para os grandes centros, as limitações existentes na oferta de serviços básicos na cidade e a ausência de mais progresso e desenvolvimento; contudo, nem isso reduzia o nosso entusiasmo pelo lugar fronteiriço que nos inflava o peito e mexia com os nossos mais puros sentimentos nativistas. E foi dito também:

–Ora, se o Ceará é terra boa… Ora, se o Ceará é terra evoluída, Guajará-Mirim também é, porque essas duas áreas brasileiras fazem divisa entre si…

Agressão à geografia, ao bom senso e à lógica… Porém, teve gente que aplaudiu essa surreal afirmação. E ninguém se atreveu ao contraditório. Toninho Nogueira rendeu-se àquela “verdade” e ergueu o dedo polegar dando apoio e confirmando a oportuníssima intervenção. E depois foi dormir sentado no seu Jeep de cor azul.

Ele também amava este lugar! E estava “morto, mortinho de bêbado”.

E outros impropérios históricos e geográficos foram cometidos naquela tarde de outubro, num tempo em que o Igarapé Palheta era límpido, puro e cheio de graça, e o tom verde de suas frias águas nem por isso neutralizava, em cada um dos mergulhos que se dava sem carpados, a influência da bebida na cabeça dos seus freqüentadores, amantes da ausência de lógica, da dialética desrespeitada e da sabedoria que falsamente se elevava como tema de conversação.

Naquele ano o Almério Madeira nos trouxe de São Paulo o Adoniran Barbosa com a sua “Saudosa Maloca” e o “Trem das Onze”. E ali o Nelson Casara, vibrante tocador de violão a exemplo do seu primo Almério, saiu-se com essa:

–Região importante mesmo jamais será o Ceará, mas o Guaporé, o rio Mequéns e o Corumbiara… O Guaporé se parece em importância com o rio Sena da França, e lá no legendário Guaporé nós temos, inclusive, a metrópole chamada de Versalhes… – e saiu rindo da sua participação, caindo com um salto mortal no verde Palheta, hoje tão judiado, tão agredido, tão vilipendiado…

Ora, o meu amiguinho de infância e de juventude, esse Nelson Casara, de quem hoje sinto tantas saudades, filho de Giácomo e de Estela Casara, que liam muito, tendo a mãe Estela como professora e incentivadora também na leitura de livros, apenas levava a todos a valorização que precisavam dar à região e da qual Nelson se ufanava, vez que naqueles ermos entre o Mequéns e o Corumbiara, afluentes do sagrado rio Guaporé, seu avô, Américo Casara, arquiteto genovês e grande empreendedor, havia implantado o seu império.

E o melhor é que o Nelson Casara, sempre tão espirituoso, estava falando a verdade!

Reconheço que não é a metrópole por ele enaltecida; mas próximo da foz do Guaporé, perto do seu encontro com o Mamoré, há uma vila chamada Versalhes, nome inspirado no palácio homônimo próximo a Paris. Esse lugar guaporense, um pouco acima do Distrito de Surpresa, onde vivem ribeirinhos e indígenas, é um local em que se fazem verdadeiras obras de arte: canoas e pequenos barcos de utilíssimo uso, em face das necessidades de transporte dos povos da floresta daquele e de outros entornos.

Convém justificar que a exatidão das afirmações geográficas acima delineadas dependia do estado etílico dos presentes, posto que se esse nível estivesse elevado logo alguém poderia dizer que a Torre de Pizza ficou torta a partir de um grande furacão que, nascendo no Ceará, passou por Guajará-Mirim e foi transformado em ciclone quando chegou ao Japão, país da África servido pelo Mar Vermelho e onde ela foi construída por Marco Polo… ou teria sido Cristóvão Colombo?


Edmilson Braga - DRT 1164

Edmilson Braga Barroso, Militar do EB R/1, formado em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Rondônia e Pós-graduado em Gestão Pública pela Universidade Aberta do Brasil.

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