A saudade orvalhou meus olhos
CRÔNICAS GUAJARAMIRENSES
A um instante de momentânea solidão, eis que de repente ela bateu à
minha porta sem alarde, como quem não desejasse importunar…
Mesmo assim a considerei temerária por tentar invadir uma
oportunidade única, particular, intimista, personalíssima, que de mim
tomou conta naqueles minutos.
Todavia, sabe-se que essa quase criatura vem revestida de uma aura
intensa, desejando só ela manipular os sentidos, mantendo-se presente e
insistindo em não ficar ausente.
Traveste-se de uma roupagem antiga e envolvida nas lembranças que pungem apertando o nosso interior, empenha-se em se mostrar altiva, desejando impor-se naqueles segundos em que nos fixamos nas doces ou amargas recordações.
E pensamentos galopam soltos, livres, vagam sem rumo determinado, apeando-se, depois, finalmente nas minhas reminiscências, quando me vejo menino sonhador integrante de uma família abençoada.
Interessante é que ela, tão sorrateira, invasiva, bateu à porta e já foi
entrando sem pedir licença. Trouxe-me cheiros, perfumes e sons tão
conhecidos, e cantou uma canção para mim tão recorrente, despertando aguçado interesse e curiosidade. O que eu poderia ver ao depois?
E ao ouvir a canção, a melodia e os versos, me comovi tanto que
percebi meus olhos se orvalharem pela emoção.
Acabei sentindo também a presença de meus pais. Minha mãe
sentou-se na sua pequena poltrona predileta e colocou os pés no pufe para
descansar as pernas. Inclusive consegui ouvir o ranger da rede sendo
embalada e, ainda, a recriminação por ter sido desleixado, não cumprindo
o ritual previsto de lambuzar com graxa a escápula que a sustentava presa
à parede.
E “Zíngara” desfilou no ambiente na voz pequenina de Gastão
Formenti, estimulado pela impiedosa presença dela, daquela virtuosa intrusa naquela ocasião.
Ela é assim: ingressa de repente; às vezes nem pede licença e
chega, como disse, sorrateira, e se aloja no nosso coração, incendiando as
nossas sensações.
Vocês a conhecem: ela tem nome, porém sem sobrenome. Vou
apresentá-la: chama-se Saudade.