Nos seringais até isso acontecia
CRÔNICAS GUAJARAMIRENSES
Por: Paulo Cordeiro Saldanha
Leôncio Adamastor Coelho veio do Ceará como Soldado da Borracha e obteve ótimo saldo no fim do segundo fabrico, após ter aprendido a técnica da defumação do látex.
Retornou ao Estado de sua origem para se casar com Jussara da Paz Moreira, sua noiva e inspiração para superar, mediante as doces lembranças dela, as dificuldades vivenciadas naquele tempo nesta Amazônia tão erma e distante dos grandes centros.
Lá chegando, uma decepção o assaltou: Jussara, cansada de esperá-lo, casara-se com Juvêncio Alcoforado. E uma tristeza o consumiu tanto que chegou a pensar em ir para o front daquela guerra inventada em 1939.
E os dias foram se passando, até que surgiu diante do seu sofrimento a alternativa de levar para o seringal Maria das Dores Sacramento, uma mulher bem nova ainda, mas que enviuvara tendo um filho de 2 anos para criar.
E, desiludido, fez um contrato com Maria das Dores, moça bonita, bem feita de corpo e versada nas lides domésticas; como tinha dinheiro, trouxe-a para o seu local de trabalho no médio Rio Branco, afluente do Guaporé, imaginando que retornaria para a antiga colocação.
Sabia-se que a convivência com Maria das Dores foi um arranjo que ia dando certo, já que ambos tinham passado por experiências nebulosas! E um foi se afeiçoando ao outro.
Mas, ao retornar e apresentar-se ao patrão, foi ele encaminhado para um novo local no alto rio Cautário, também de propriedade do seu senhor. Uma espécie de prêmio para quem sabia tirar leite de pedra, quanto mais da Hevea brasiliensis, e, assim, poder alcançar ótima produção gumífera.
O imprevisível acabou acontecendo, pois Leôncio foi acometido de calafrios, forte febre, taquicardia, dores de cabeça, tremores e delírios, entre outros sintomas; contraiu a danada da maleita e o rendimento não lhe foi favorável.
Enquanto esteve entre a vida e a morte, Maria das Dores, que aprendera a atividade, andou cortando algumas seringueiras e ia dando avanço no métier, porém de forma inferior à capacidade do companheiro que jazia numa rede em estado crítico até que umas doses de Atebrina e Paludam o recuperaram parcialmente. Mas achava-se debilitado demais, e em face do tempo em que ficou parado não conseguiu alcançar o nível de produção esperado pelo patrão.
E no final do terceiro fabrico foi sem surpresa que o senhorio lamentou em alto e bom som, esbravejando mesmo, contra o que considerou um péssimo resultado. E ameaças foram reverberadas ali na colocação, enquanto botava os olhos na mulher do seu trabalhador.
Por conta da insensibilidade de seu superior, decorrente da ganância de um empregador irracional, uma punição foi-lhe aplicada: voltaria para o antigo local de trabalho. E, pior, sua companheira seria apresentada a outro seringueiro e a ele entregue como prêmio pela produtividade alcançada.
E assim foi feito!
De nada adiantaram as ponderações do casal, as negativas e o posicionamento firme de Leôncio, que tentou pegar na espingarda para se contrapor a esse tipo de violência, mas enfraquecido foi facilmente desarmado, e apanhou bastante, enquanto via a companheira e o pequeno filho dela ser levado rio abaixo. E ele transferido, rosto inchado, quase transfigurado, para a nova colocação…
Para resumir: o patrão, ao levar Maria das Dores para o barracão, lugar onde a esposa dele poucas vezes chegava, passou a coabitar valendo-se de rudeza própria e transformando-a em amante; até que, cansando-se, a encaminhou como se mercadoria fosse para conviver ao lado do antigo brabo (seringueiro inexperiente), que por sua performance seria promovido a seringueiro naquele novo fabrico.
Fatos como esses aconteciam costumeiramente nesta Amazônia, inclusive em pleno século XX, porque não havia autoridades, e o patrão, homem poderoso, ora se transformava em Delegado, Promotor, Juiz e Sacerdote…
Leôncio Adamastor Coelho, antes homem forte e intrépido, quase uma itaúba, adoeceu tempos depois e morreu tísico no Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, desiludido e decepcionado com o rumo inesperado, jamais imaginado, com que o destino lhe assombrou.
Esse nosocômio foi construído todo em madeira por Dom Rey, o Bispo da cidade, um benfeitor do município, que lutava contra as injustiças como essa que surpreendeu Leôncio, um homem de bem, trabalhador e honesto!