Emprego das Forças Armadas em ações que as desviam de suas funções é um grande risco
Recentemente, o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior, solicitou o apoio das Forças Armadas para conter possíveis manifestações violentas que possam ocorrer no dia do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, marcado para o dia 24 de janeiro, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Além de esse pedido não ser viável, visto que tal decisão não cabe ao chefe do Executivo municipal, a solicitação causou desconforto no comando do Exército Brasileiro, que considera que ocorre uma “banalização” do uso das Forças Armadas no País.
O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, chegou a se manifestar no Twitter sobre o assunto, mostrando-se preocupado com o “constante emprego do Exército” em “intervenções” nos estados.
Ele destacou que, só no Rio Grande do Norte, as Forças Armadas foram chamadas três vezes em 18 meses. “A segurança pública precisa ser tratada pelos estados como prioridade “zero”. Os números da violência corroboram minhas palavras”, afirmou o general.
O ministro da Defesa, Raul Jungmann, também se mostrou contrário ao uso indiscriminado das Forças Armadas. O efetivo do Exército tem sido empregado em ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), instrumento excepcional, localizado e por tempo limitado, conforme descreveu o ministro.
“Às Forças Armadas, cabe a defesa e a soberania do País e, somente com autorização do presidente da República, a pedido de um governador, podem atuar, excepcionalmente, por tempo determinado”, explicou. Essa também é a condição que está expressa na legislação brasileira.
No entanto, as Forças Armadas foram acionadas 29 vezes, entre 2010 e 2017, para atuar na segurança pública de estados e do Distrito Federal. O caso mais recente foi no Rio Grande do Norte, quando o presidente Michel Temer autorizou o envio de 2 mil militares.
O motivo é a greve dos policiais e bombeiros, iniciada em 19 de dezembro do ano passado, e encerrada na quarta-feira da semana passada. Além disso, as Forças Armadas participaram de 15 operações integradas no Rio, no ano passado. As ações envolveram 31 mil militares e gastos de R$ 43 milhões. Segundo Jungmann, a operação de GLO no Rio é a mais longa desde a Constituição Federal de 1988.
Parte do motivo pelo qual as autoridades são contrárias ao emprego do Exército em situações tão corriqueiras é o simples fato de que o efetivo não está treinado para esse tipo de situação, como a atuação em manifestações populares.
“A tarefa do Exército não é essa, não tem nada a ver com segurança pública. Por isso mesmo, o próprio Exército e suas lideranças tem se manifestado contra essa banalização da utilização da força militar para tarefas de segurança pública”, explica o sociólogo e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.
Ele argumenta que, embora exista a previsão legal da GLO, o fato de o Exército ter sido convocado tantas vezes “denota uma incapacidade dos órgãos responsáveis pela segurança pública em darem conta da sua tarefa”. Isso porque espera-se que a GLO seja utilizada em casos excepcionais, quando os estados realmente não conseguirem suprir a demanda – por exemplo, quando houver greve de policiais ou crises penitenciárias.
É exatamente por isso, justifica Azevedo, que foi criada a Força Nacional de Segurança (FNS), uma tentativa de reunir policiais que possam atuar em vários estados que se encontrem em situação de crise. No Rio Grande do Sul, um efetivo de 120 agentes da FNS está reforçando a segurança pública desde agosto de 2016. “Essa demanda para que o Exército entre em ação denota a falência da estrutura nacional. Falta um único sistema que integre tudo, a articulação federal, estadual e municipal. Esse sistema de hoje não está funcionando”, explica.
O que diz a lei que regulamenta o emprego das Forças Armadas no BrasilA Lei Complementar nº 97, de junho de 1999, define as normais gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas.
No artigo 15, fica definido que o emprego das Forças Armadas na defesa da pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do presidente da República.
Também fica definido que a atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Tais instrumentos serão considerados esgotados quando o chefe do Poder Executivo federal ou estadual os declarar indisponíveis, inexistentes ou insuficientes.
Por fim, fica também definido que as Forças Armadas serão empregadas “de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado”.
Banalização do uso do Exército desestimula políticas estaduaisCom a intenção de apoiar políticas públicas que contribuam para a redução da violência letal e patrimonial, o Instituto Sou da Paz também vê com preocupação o excesso de participação militar na segurança pública. “Se banalizamos esse uso, toda vez que o pedido for aprovado, os governantes ficam desestimulados a resolver o problema.
Esses pedidos devem ser criteriosos, e a análise da concessão deve ser mais rigorosa ainda”, opina o gerente de Sistemas de Justiça e Segurança Pública, Bruno Langeani. Ele também ressalta que a constante presença de militares nas ruas pode causar um desgaste de imagem das Forças Armadas junto à população. “É um tipo de solução que praticamente não tem nenhum vencedor, todo mundo perde.”
No entanto, Langeani reconhece que os governos estaduais podem se ver obrigados a recorrer ao Exército em situações extremas, porque o recurso da FNS também possui limitações. “São operações muito caras, que retiram homens das polícias estaduais, e o uso desse emprego se dá a partir do pagamento de diárias. Além de extremamente custosa, é uma força que não é muito rápida”, pondera. Os custos envolvendo operações da Força Nacional são do governo federal.
Para ambos, o pedido de Marchezan foi inconsequente e indevido. “Não cabe a ele e já estava havendo tratativas do Gabinete de Crise. Essa manifestação foi infeliz, houve uma utilização política para a ocupação de espaço de um prefeito que tem uma base eleitoral pautada por essa polarização política”, afirma Azevedo. Para Langeani, o pedido demonstrou “leviandade” por parte do prefeito, uma vez que essa não era uma atribuição dele – algo que o próprio Marchezan reconheceu, mais tarde.