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A MENINA DO RIBEIRÃO


Por: JP. Antelo

Eu sei que muitos já passaram pelo rio Ribeirão. Na antiga passagem da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. E quem nunca viu a mulher que cumprimenta os transeuntes. Mas eu gostaria de te perguntar, você sabe a verdadeira história dela? O que aconteceu para aquela mulher ficar parada ali?

Em um dia desses, quando me deslocava para a cidade de Porto Velho, já estava terminando a curva quando tive a sensação de que a mulher me olhava. Fiquei fixado no retrovisor que quase não vi que vinha um carro na direção contrária. Quando parei o carro que olhei para trás, tive a impressão de ver um sorriso no rosto da boneca. Senti um arrepio subir e aquela brisa fresca tocar meu pescoço, como uma baforada de uma alma em minha nuca.

Continuei minha viagem. Mas a imagem da mulher martelava em minha cabeça. Foi quando comecei a buscar mais informações sobre aquela boneca que fica ali. Sempre olhando o movimento. Sempre estática e pálida. Sempre fria, como último sussurro de vida.

Conversando pela região. Conheci um pouco da história dela. Isso mexe comigo até hoje.
Nessas conversas, descobri que aquela boneca está ali por uma promessa, feita por um casal que era morador da região. Nas histórias, contam que esse casal perdeu filha no rio Madeira. O rio mais perigoso que possa existir. Fazendo vítimas desde a construção da estrada ferro. Abrigando monstros que tem dimensões ainda desconhecidas por nós.

A filha desse casal foi engolida pelo rio e nunca mais voltou. Não se sabe se foi por causa das muitas lendas existentes sobre os encantos do boto, ou se só uma fatalidade. O sabido é que ela sumiu. A luz dela se apagou, como a chama de uma lamparina que em dias de tempestade foi apagada pelo pai da mata ou pela Matinta Pereira na extração do látex ou no corte de lenha para alimentar a Maria Fumaça.

E quanto mais eu entrava na história dela, mais eu tinha medo do que senti e vi naquele dia de viagem. Não sei por que escrevo essas lembranças. Mas sinto que preciso. Há alguns dias já não durmo direito. Tenho pesadelos e sinto o fundo do meu ser que alguém me observa.

Depois que descobri toda essa história. Fiz outra viagem para Porto Velho. A ida foi tranquila. Não percebi quando passei pela boneca. Mas quando voltei a história foi outra. Por alguns motivos a minha saída de Porto Velho atrasou. Quando realmente estava na estrada já eram quase nove horas da noite. Até a entrada do entroncamento a viagem foi tranquila. Mas quando fiz a curva, tinha uma moça. Estava pedindo carona. Tinha um casal com ela.

Perguntei para onde eles iriam, me disseram que só ela iria e que me pagariam a corrida até Nova Mamoré. Quem não quer uma ajuda no combustível? Não recusei. A moça vinha calada a viagem toda. Porém quando passamos do Araras e começou a conversar comigo. Vez ou outra eu olhava para seu rosto, na esperança conhecer ela de algum lugar, mas as expressões eram vazias. E eu quase não via por causa dos cabelos caídos sobre o rosto. Pareciam estar molhados. Achei que tivesse lavado há pouco tempo. Ela começou a falar como a vida pode ser breve e como uma pessoa pode ficar presa em algo tão pequeno. Ela olhou em meus olhos e foi quando eu vi um olho vermelho e fundo. Olheiras de quem há muito não tem uma boa noite de sono. Me deu um sorriso amarelo e disso: “O que você acha da morte?”

Eu sorri de nervoso, que conversa era aquela. Em um horário nada apropriado. Fiquei em silencio por um tempo. Falei o que todos falamos quando estamos pressionados: “é complicado”. Ela deu uma gargalhada que me atravessou e foi quando olhei para os pés e mãos dela. Estavam engelhados. Como quem estava o dia todo no rio ou em uma piscina.
Eu nunca senti tanto medo minha vida. Era como se o maior dos predadores me tivesse na mira. Era morte certa.

Ela ficou calada. E só voltou a falar quando já estávamos na curva para a ponte do Ribeirão. Ela me pediu que fosse por baixo. A ponte nova já estava funcionando, mas ela disse que queria passar para ver alguma coisa na casa do doce. Pensei em falar que pelo horário era bem possível que estivesse fechado, mas não fiz e atendi seu pedido. Fomos bem devagar.

Passamos pelo quebra-molas. Estávamos em cima da ponte. Quando o carro já estava vencendo a ponte, o farol começou a mostrar a boneca. Meu corpo todo tremia. Foquei na boneca. Quando olhei para o lado. Não tinha ninguém. O banco estava molhado. Meu coração acelerado e olhos esbugalhados. Quando passei pela boneca que olhei pelo retrovisor. Ela acenou e sorriu. A luz se dissipava. O coração quase saindo pela boca.
Eu só lhe peço que tome cuidado.

A vida é cheia de surpresas. Eu que sempre fui tão cético. Hoje quase não consigo dormir. Olhos fundos e amedrontados.
A noite tudo é possível.

 


Edmilson Braga - DRT 1164

Edmilson Braga Barroso, Militar do EB R/1, formado em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Rondônia e Pós-graduado em Gestão Pública pela Universidade Aberta do Brasil.

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