Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira (AM) atende população de 45 mil pessoas de até 23 etnias. Adaptações incluem leitos em rede e liberação de pajés.
Lana Torres, G1 Campinas e Região — São Gabriel da Cachoeira, AM
O leito de UTI mais próximo a São Gabriel da Cachoeira (AM), cidade com maior percentual de população indígena do Brasil, fica a duas horas de voo, em Manaus (AM). Alguns exames, como biopsias e sorologias, também só a capital oferece, e é uma viagem ainda mais longa até os resultados retornarem. Num município com dimensões territoriais superiores a muitos países (são 109 mil km²), e comunidades indígenas praticamente isoladas na floresta, o desafio de oferecer atendimento de saúde de média complexidade a toda a população da região cabe a um único hospital.
Em São Gabriel da Cachoeira para acompanhar o inédito vestibular indígena da Unicamp, que será realizado no domingo (2), o G1 foi conhecer a rotina da unidade que é estadual, gerenciado pelo Exército e se adapta no dia a dia para atender brasileiros de até 23 etnias indígenas diferentes e que, muitas vezes, não falam o português.
De acordo com a tenente coronel Cristine Souza Lima, sub-diretora do Hospital de Guarnição de São Gabriel, mesmo com a carência de pessoal e as dificuldades geográficas, a unidade atende uma população de 45 mil habitantes, 90% dela composta por indígenas.
Redeterapia
Os profissionais militares, vindos voluntariamente ou por serviço obrigatório de várias partes do Brasil, oferecem o conhecimento que têm em saúde para os pacientes, mas também o aprimoram no contato com a população local.
Foi a partir do comportamento de uma indígena, por exemplo, que improvisou uma minirrede com um lençol para acalmar o filho internado na pediatria, que o hospital aderiu à redeterapia para os leitos de recém-nascidos.
“A redinha, por ter este formato abaulado, quando a criança está lá, ela lembra o útero da mãe, então, dá um conforto para a criança. Além disso, ajuda a ganhar peso e melhora a recuperação de infecções porque, como ela fica compactada na redinha, ela se movimenta menos, e se estressa menos”, explica a enfermeira pediátrica paranaense Katerin Martins Demozzi.
Katerin conta que a técnica já era utilizada em outros hospitais, mas que em São Gabriel ganhou uma aceitação ainda maior pela identificação do indígena com a rede. “É uma excelente aceitação. Nós vimos que dá para aproximar a cultura deles com alguma coisa que vai trazer benefício para a recuperação das crianças”, diz.
Idioma e pajé
Essa não é a única adaptação do atendimento para acolher a população na própria cultura. Parte dos militares que trabalham no hospital é composta por indígenas locais que, além de atuarem na sua área, fazem as vezes de tradutores quando o hospital recebe um paciente que não fala o português. A cidade de São Gabriel tem como idiomas oficiais, além do português, o tukano, o baniwa e o nheengatu.
Outro comportamento particular do paciente indígena, segundo os funcionários, é recorrer primeiro ao pajé. “Muitas vezes o paciente primeiro é atendido pelo pajé. Depois que ele percebe que o caso vai agravando, ele mesmo orienta e pede para passar para a ‘medicina do branco’”, conta a tenente coronel.
Ela lembra que já houve no passado um pajé fixo no hospital, mas atualmente isso depende do desejo e solicitação da família, e não tem sido uma prática muito frequente.
“Quando a família chega aqui e fala ‘posso trazer o pajé para rezar?’, a gente fala: ‘Pode, desde que ele não faça fumaça’. Por causa do oxigênio, por causa da enfermaria com outros pacientes. Mas vir fazer uma reza, não tem nenhum problema”, afirma a enfermeira militar.
Malária, acidente, desnutrição
De acordo com a responsável pelo hospital, além dos casos mais graves de malária (a cidade vive uma epidemia com 14 mil casos da doença), a grande demanda de atendimento está relacionada a acidentes com motos e ferimentos com arma branca.
Já na pediatria, há muitos casos de desnutrição e as consequências dela: pneumonia e gastrointerite, por exemplo. A unidade também recebe muitos partos.
G1/montedo.com