Crônicas Guajaramirenses

O Dezessete


CRÔNICAS GUAJARAMIRENSES

Por: Paulo Cordeiro Saldanha

O Dezessete fazia parte de uma família razoavelmente grande, que morava entre as casas do Rio Grande, na Quintino Bocaiúva e a Rua Benjamin Constant, ali bem perto da residência do Capitão Alípio. Era um rapaz negro, falante, bem loquaz mesmo, e, dono de uma capacidade de surpreender, notadamente no lado hilário da vida. Não me perguntem o porquê do apelido Dezessete…

Gostava de tomar uns tragos, em que pese o seu interesse para a prática dos esportes, ainda que, em que pese o esforço, não ter relevado talento para o futebol, para o ciclismo, para o boxe, enfim, resumindo, a aptidão que sobrava noutros rapazes lhe faltava “de montão”, seja para os esportes citados seja para outros por ele também, em vão, exercitados. Era uma tentativa aqui, que se transformava em eloqüentes gozações; outra ali, enfim, que serviam de vibrantes e jocosas recordações nos bares, nas praças e debaixo dos benjamins.

Tentou ser músico como os seus parentes; não conseguiu emocionar ninguém.

Quando o Estádio de Futebol foi inaugurado (hoje a Prefeitura), houve corrida rústica, de velocidade, de bicicleta na pista ao derredor do campo, com distribuição de prêmios para os primeiros colocados. Em todas as modalidades o Dezessete se inscrevera. Chegou em último!

No ciclismo, eu observei, por exemplo, que enquanto os competidores retiravam os pára-lamas, bagageiro, faróis, campainha, visando tornar o veículo mais leve, o Dezessete nos surgiu com uma bicicleta de pneu balão (naquela época eram fabricadas), toda ela, cheia de bandeirolas, bagageiro, espelho, pára-lamas, etc. Para encurtar essa narrativa, enquanto os primeiros colocados concluíam a oitava volta, ele, desfilava a sua elegante personalidade, concluindo a segunda; ia sendo aplaudido e se empolgava com os acenos que vinham das arquibancadas e os retribuía com uma fleuma inglesa, cuja saudação mais entusiasmava a torcida em seu desfavor.

Num jogo do Fronteira contra o Vasco, eu ainda menino, o vi errar um gol, chutando por cima do travessão, uma bola que entraria por entre as traves se ele não tocasse nela. Agiu como se zagueiro fosse (e dos ruins), posto que se talento o back tivesse faria um tento contra. Note-se que o Dezessete era, por falta de opção, ponta esquerda do Fronteira, muito embora só se valesse da perna esquerda para segurar os dedos dos pés, por certo, cheios de frieira.

A única cena trágica que vi em campo e que o envolveu foi a disputa em que, de forma violenta, num jogo entre o Guajará e o Fronteira, num lance tresloucado, acabou quebrando a perna do Xapuri, lateral direito da agremiação alvirrubra. Eu soube que se arrependera, mas já era tarde.

Não assisti a cena, mas dela tomei conhecimento. É que vez por outra o Dezessete fazia a preliminar de umas lutas de boxe e a torcida, em nome do incentivo, a ele aplaudia. Lá pelas tantas chega a Guajará-Mirim, um boliviano versado profissional do boxe, fazendo exibições entre Trinidad, Riberalta, GuayaraMerin e, como de praxe, aportou por aqui. Queria achar um adversário para demonstrar a sua “arte”. Como era um profissional, não encontrou competidor. Até que alguém se lembrou do nosso pseudo-herói.

__De jeito nenhum. Não quero apanhar. Já basta o que já tenho sofrido… De jeito nenhum!

__Mas Dezessete vai ter dindim! Tu vais ganhar uma grana! E além do mais, a luta é de brincadeirinha; é só uma luta de faz-de-conta… 

__Quanto eu vou ganhar? Já estava quase convencido.

__Uns 10% do faturamento líquido…

__De jeito nenhum! Estou fora! Dinheiro não me interessa! 

__E se forem 20% do faturamento bruto? Era o intermediário falando.

__Quanto seria, então?

__Uns novecentos cruzeiros.

__Se chegar a mil cruzeiros, pode contar com o meu destemor. Houve a concordância do empresário.

__Só que tem um porém: nem você bate forte, nem o boxeador boliviano te baterá forte, certo? Mas no final, tu terás que cair nocauteado. Faz o teu nome! Certo?

__Tu “acha” que eu sou trouxa? Se eu bater forte ele me quebra todo, não é mesmo?

__????

E a luta começa, num Cine Guarany absolutamente lotado. Tinha gente em pé, outras pessoas se empurravam pelas portas laterais ao lado da antiga Prefeitura. O Locutor anuncia os lutadores. Quando o Dezessete aparece, o cinema vem abaixo; aplausos, gritos, assobios e muitas palmas. O Dezessete se empolga! Acena, pula, faz gestos como se estivesse esmurrando alguém. Fora tocado na sua sensibilidade e um forte sentimento de brasilidade o impulsionou. Não era mais uma luta entre dois homens. Na sua cabeça era uma luta entre o Brasil e a Bolívia. Lutar pela sua Pátria, naquela hora, era a sua grande razão.

E o nosso lutador parte para cima do boliviano de forma ensandecida; bate forte! Há um clinch1 e o Boliviano pergunta:

__Senhor Dezessete e nuestro acuerdo? 

__Que acuerdo, que nada, seu boliviano de uma figa. Tu “vai” é apanhar muito…

Ocorre que o Dezessete acorda, quase uma hora depois, no hospital. 

__Que aconteceu, Dezessete?

__Mas eu ia tão bem! Parti pra cima do homem batendo bem! Ele queria ser beneficiado com um “acuerdo”, que eu nem lembrei desse “acuerdo”; aquelas pessoas me aplaudindo… aí ele parou, após uma sessão de pancadaria que me assustou, eu fechei a guarda e coloquei os braços sobre a minha cabeça protegendo a testa; ai eu, alguns segundos depois, fui ver, porque ele havia parado e abri os braços, para ver o homem. Só vi a luva caminhando em direção a minha testa. Apaguei! 

Naquele “guerrinha” particular, o Brasil, através do Dezessete, perdeu para a Bolívia, numa luta de boxe que não ultrapassou o segundo round. Coisas da vida! Coisas do Dezessete.

1Clinch-pugilismo.lance em que os lutadores de boxe se agarram durante a luta, um prendendo o braço do outro sob o seu próprio braço; corpo-a-corpo (Dicionário Houaiss).


Edmilson Braga - DRT 1164

Edmilson Braga Barroso, Militar do EB R/1, formado em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Rondônia e Pós-graduado em Gestão Pública pela Universidade Aberta do Brasil.

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