Crônicas Guajaramirenses

A sucuri e a alagação


CRÔNICAS GUAJARAMIRENSES

Por: Paulo Cordeiro Saldanha

A alagação tem olhos e estrutura de sucuri. Olha-nos com sagacidade! com língua de fora “fareja” a nossa própria fraqueza, identificando o tamanho da nossa fragilidade e chega de mansinho à noite, vara a madrugada e nos surpreende durante o dia.

E eu, que moro num dos barrancos mamorenses, como que hipnotizado pelo magnetismo que emana das águas, acordo e corro para a varanda e, entre assustado e esperançoso, vejo que aquela imensidão líquida vai se aproximando, aproximando até que isolou o único caminho, a Leste, que demandava à cidade e que, agora, nos espreme, como se fosse um tentáculo, através do lado Oeste de nossas vidas.

E a alagação qual sucuri, (essa uma, que tem nos roedores, aves, felinos, bezerros e jacarés a sua fonte primária de comida), vai alimentando o cardápio de nossas fantasias, ante o receio de que ela possa invadir a nossa casa, roubando-nos a alma e devorar-nos, de maneira inclemente, por conta da sua voracidade diluviana, que poderia abraçar-nos, não fosse a esperança que vamos ninando em pensamento, com a fé no rumo do Criador.

Estamos localizados na beira do rio, e é nas margens dele, das baias, lagos e igarapés que a sucuri espreita suas futuras vítimas, quando vão em busca de água para beber. Num átimo, sem que a presa possa safar-se, num bote a pega pelo pescoço e “zás”, com um abraço macabro envolve o corpo do animal e vai sufocando-o, a essas alturas já puxada para o fundo do lugar inundado.

Assim age a alagação; qual boiúna, pega-nos de surpresa e, por constrição, vai procurando atingir a nossa cabeça, pois é sádica e, tão sorrateira, deseja nos asfixiar. E a alagação faz conosco o que os homens fazem com a sucuri, que, muitas vezes pode transformar-se em predadora dos pequenos humanos seres, que a temem, mas que, em condições adversas, mediante as armas de grosso calibre, transformam-se em troféus de adultos, até porque não apenas o seu couro (em face do preço tão expressivo nos mercados clandestinos), mas a sua vida é mais preciosa, muito mais, do que essa pobre existência de homens e mulheres, cuja cidadania nada vale para algumas autoridades do pedaço.

Ora, sabe-se que esses répteis, insisto, têm no abraço sinistro, o golpe fatal para as suas presas, haja vista serem da espécie das Constritoras e as apertam violentamente até que, extenuadas, deixam de respirar.

A alagação, inspirando-se na sutileza e na argúcia fúnebre da anaconda, vai despertando o horror, horripilante quadro, representação da destruição e da morte. De mansinho, manda-nos o tétrico recado ao anoitecer para, após a madrugada, dar um aviso: “amanhã estarei maior e mais devastadora que hoje”.

Mas, nós, teimosos, insistimos em permanecer neste cenário que, a cada dia pode ficar mais lúgubre, haja vista representar a nossa história, os nossos pequenos investimentos, os nossos sonhos e as nossas realizações. Mas que poderão ser engolidos pela boca enorme da “madrasta d’água” que nos espreita…

Assim, como a cobra grande tem a capacidade de engolir uma paca, por exemplo, uma onça ou um jacaré enorme, em face do movimento com que a natureza lhes favoreceu, por conta da elasticidade das mandíbulas, a alagação tem abertura muito maior. Como disse, ela sorrateira, silenciosa, esparrama-se pelas planícies do entorno e amplia os seus domínios por toda a grande geografia, por todo esse imenso ambiente. E como quem chega do nada, nos ataca de surpresa, molhando primeiramente os nossos pés, o joelho, a barriga, o peito, o pescoço e afunda as nossas cabeças no seu leito frio e barrento, destruindo a vida, as coisas, danificando equipamentos, colchões, armários, máquinas e demais instrumentos, submetendo o ribeirinho a perdas, ao lamento, ao chôro e ao difícil recomeço.

E, nós, teimosos, medindo diariamente a subida dos seus níveis, vamos, manifestando a nossa fé em Deus, esperando a chegada da primeira friagem, com a qual a natureza celebrará a pausa na subida das águas, para que, já na segunda queda de temperatura, em torno de 10 ou 15 de abril, os rios possam comemorar a alegria e, assim, começar a baixar.

Com a segunda friagem a sucuri vai embora para outras terras mais distantes, a procura das baias, para ficar longe dos seus predadores, exemplo seguido pela alagação, verdadeiro saqueador, que dará um “tchauzinho” até as cheias do próximo ano…


Edmilson Braga - DRT 1164

Edmilson Braga Barroso, Militar do EB R/1, formado em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Rondônia e Pós-graduado em Gestão Pública pela Universidade Aberta do Brasil.

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