Militares

General e outros 26 militares brasileiros enfrentam rebeldes na selva para evitar novos massacres


Marcelo Godoy
O general de divisão Octávio Rodrigues de Miranda Filho deixou em março o comando da 8ª Região Militar, em Belém, para se tornar o último force commander da Monusco, a Missão da ONU para Estabilização do República Democrática do Congo (RDC), a primeira força de imposição da paz criada pela Nações Unidas. Ia comandar o processo de desmobilização da missão, que tem cerca de 17 mil integrantes, dos quais 12,5 mil soldados, desdobrados no leste congolês, onde atuavam rebeldes do grupo M-23, liderados por tutsis.

Mal chegou no RDC, o general foi confrontado pela escalada do conflito na região norte do estado do Kivu, que levou cerca de 300 habitantes da região a deixarem suas casas. Derrotados em 2013, quando a Monusco era comandada pelo general Carlos Alberto Santos Cruz, o M-23 rompeu a trégua com o governo de Kinshasa e voltou a agir na região, que abriga mais de 1,5 milhão de hutus.

Comandante da Missão da ONU na República Democrática do Congo (MONUSCO), General de Divisão Otávio de Miranda Filho (Reprodução Instagram).

Em 1994, radicais hutus mataram 800 mil tutsis e hutus moderados na vizinha Ruanda. Agora, as forças do M-23, que, segundo o governo congolês, receberiam apoio de Ruanda, ameaçam tomar a cidade de Goma, que abriga 1,5 milhão de pessoas, a maioria delas hutus. Foi para evitar o risco de o M-23 executar massacres e uma nova limpeza étnica na região que o general Miranda desdobrou suas tropas da ONU no dia 10, na Operação Springbok. Em entrevista ao Estadão, ele diz que o cronograma de retirada da Monusco está previsto para ser completado em 2024, 30 anos depois do genocídio em Ruanda. Ele ainda defende que a União Africana passe a desempenhar o papel hoje da ONU na estabilização do Congo.

Qual a importância da Operação Springbok para a estabilização da RDC?
A RDC vive um momento político especial em razão da proximidade das eleições, previstas para o dia 20 de dezembro. Uma parcela significativa da população está impedida de participar do processo de seleção de seu próximo governante, em razão da presença e do domínio do movimento armado ilegal M-23 nas regiões de Masisi e Rutshuru. Os residentes dessas regiões não puderam ser cadastrados pela Comissão Eleitoral Nacional Independente, por absoluta falta de segurança.

O atual chefe de Estado busca a reeleição e decidiu optar por uma campanha militar para retirar o M-23 dos territórios citados. Por inaptidão de suas Forças Armadas (FARDC), essa campanha não obteve sucesso e o M-23 não só recuperou as regiões inicialmente perdidas como vem conquistando cada vez mais territórios e se aproximando perigosamente de Goma, a capital do Leste congolês, com uma população de mais 1,5 milhões de habitantes.

A Operação Springbok é a resposta da Monusco para a possível tentativa do M-23 de tomar as cidades de Goma e de Sake. A queda dessas duas cidades colocaria uma pressão tal sobre o atual governo que poderia inclusive inviabilizar as eleições. O objetivo do M-23 é justamente desconstruir a candidatura do atual presidente ou, pelo menos, impedir que as eleições sejam realizadas, para obrigar o governo a voltar para a mesa de negociações em uma posição de fraqueza, o que permita ao movimento alcançar os seus objetivos políticos. A Operação Springbok, se bem sucedida, contribuirá significativamente para a estabilização do Leste do país, dando fôlego à atual administração para prosseguir com o processo eleitoral e tentar a reeleição.

De que forma o M-23 ameaça a população civil da região de Goma?
Em 2012 o M-23 invadiu a cidade de Goma promovendo a morte de muitos civis. Em 2013, fizeram nova tentativa, mas foram rechaçados por uma coalizão FARDC/Monusco. Nas regiões dominadas pelo M-23 eles promovem a cobrança de taxas ilegais, pedágios nos principais eixos de acesso e procuram assumir o papel do Estado, sem contudo ter qualquer compromisso com as responsabilidades inerentes à posição. Pessoas são assassinadas pela simples suspeita de resistir à presença e controle do movimento armado ou por serem suspeitas de colaborar com as Forças Nacionais. É esse o tipo de ameaça que o M-23 inspira nas populações de Goma e Sake. Ademais, as populações dessas duas cidades são compostas, em boa parte, pela etnia Hutu, o que pode levar a uma tentativa de limpeza étnica.

Quantos brasileiros estão hoje na Monusco e em quais funções?
A Monusco conta com a presença de 26 militares brasileiros das três Forças Armadas. Treze militares especialistas em Operações em Ambiente de Selva integram a Equipe Móvel de Treinamento de Operações na Selva. Duas militares da Força Aérea integram o Estado-Maior da Brigada de Intervenção, a FIB. Um major e uma capitão do Exército integram o Estado-Maior do Batalhão Uruguaio. Oito oficiais do Exército integram o Estado-Maior pessoal do Comandante da Força, além é claro, do meu próprio cargo como force commander.

Quais foram as tropas deslocadas para o terreno para defender a região da ação dos rebeldes?
A região de Goma e Sake se encontra na província de North Kivu, que compreende, na divisão militar da Área de Responsabilidade da Monusco, o Setor Central. Este Setor é constituído por tropas da Índia e do Marrocos e são comandadas por um general de brigada indiano. Também nesta área se encontra desdobrada a Reserva do force commander, composta por tropas do Uruguai e da Guatemala.

Além dessas tropas já presentes na área de operações, movimentei tropas do Setor Sul, do Paquistão, para reforçar a defesa das duas cidades e tropas da FIB, ao norte da área de operações, para fixar parte do poder de combate do M-23 naquela região, negando-lhe o uso dessas tropas no reforço ao cerco de Goma e Sake. As tropas da FIB deslocadas para a área de operações são compostas por militares da Tanzânia e do Nepal.

O cronograma de início de desmobilização da Monusco para dezembro está mantido, apesar das ações dos rebeldes?
Sim. O calendário de desmobilização está mantido, mesmo com a pressão atualmente exercida pelo M-23. A razão para isso é que o processo de desmobilização está previsto para ser iniciado pelo Setor Sul, em janeiro de 2024, o qual, até o momento, apresenta-se como o mais estável dentre os quatro setores da Área de Responsabilidade da Monusco.

Uma cláusula de flexibilidade está prevista no plano de transição acordado entre a Monusco e a FARDC, que permite uma mudança de prioridade na sequência de desmobilização, caso a situação no Setor Central, o segundo a ser desmobilizado, com início previsto para maio de 2024 e término em Agosto do mesmo ano, ainda não esteja solucionada.

É claro que este plano de transição ou de desengajamento só se tornará realidade após o término das negociações em andamento entre o Conselho de Segurança (da ONU) e o Governo da RDC, que serão refletidas no próximo mandato, a ser divulgado em meados de dezembro do corrente ano.

A Monusco sofreu alguma baixa durante o período em que o senhor está no comando?
Desde que assumi o comando da Força, em Março deste ano, já sofremos três baixas. Contudo, todas por questões de saúde. Perdemos dois companheiros por Infarto e um por Malária.

O senhor acredita que a RDC estará estabilizada em dezembro, quando a Monusco começar a deixar o país ? Ou esse desafio permanecerá não só para a RDC, mas também para as outras nações africanas interessadas em uma paz duradoura na região?
Primeiramente, é preciso esclarecer que dezembro de 2023, após as eleições, é a data para início do Processo de Desengajamento. Para atender a essa expectativa do governo, demonstrar boa fé e mostrar que estamos considerando seriamente o convite que recebemos para encerrarmos a nossa participação no país, estamos entregando a nossa base em Lubero para a FARDC, ainda neste ano de 2023.

O Plano de Desengajamento prevê a saída da Monusco em cinco fases. A primeira (Fase Zero) de outubro a dezembro deste ano, consiste na construção conjunta e aceitação pelo governo local e o Conselho de Segurança do planejamento proposto, além da entrega da base de Lubero. As fases 1, 2 e 3 acontecerão a cada quatro meses ao longo de 2024, com encerramento em dezembro de 2024. A última fase é meramente logística e administrativa, quando o Setor de Apoio Logístico fará a liquidação das instalações restantes e entregará os locais ao Governo ou aos proprietários privados, de acordo com a legislação vigente, com atenção particular às questões ambientais.

Foram estabelecidos quatro benchmarks para a saída da Monusco de forma responsável, planejada e idealmente duradoura: a proteção de civis por parte das Forças Locais ou Regionais; a Reforma de Segurança dos Setores (leia-se capacitação e treinamento das Forças locais); adesão ao processo de desmobilização, desarmamento e reintegração à sociedade; e eleições transparentes e confiáveis.

Em minha avaliação, nenhum destes benchmarks será cem por cento atingido até a completa retirada da Monusco. Isto significa dizer que, certamente, a RDC não estará estabilizada até dezembro de 2024. Pensando nisso, o Planejamento de Desengajamento prevê uma análise da situação após cada fase do processo, antes de seguir para o passo seguinte.

O desafio de estabilização da RDC permanecerá. Contudo, após quase 25 anos de presença naquele país, não vejo nada de significativamente diferente que possa ser feito, que justifique uma extensão da presença da Monusco para além de dezembro de 2024. Talvez seja tempo de as organizações regionais, sob a égide da União Africana, darem prosseguimento ao trabalho iniciado pela Monusco.

As conquistas da Monusco ao longo desses quase 25 anos são inúmeras e em todas as áreas. Mas, ao observarmos o que vem acontecendo no continente africano, com seis golpes de estado nos últimos quatro ou cinco anos, é necessário compreender que a juventude africana está tentando passar a mensagem de que já é tempo de eles mesmos assumirem os destinos de seu próprio continente. O que, na minha opinião, precisa ser respeitado.

ESTADÃO/MONTEDO


Edmilson Braga - DRT 1164

Edmilson Braga Barroso, Militar do EB R/1, formado em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Rondônia e Pós-graduado em Gestão Pública pela Universidade Aberta do Brasil.

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